Li por estes dias um artigo delicioso da jornalista Fernanda Câncio sobre os livritos dos ''Cinco'' e da ''Enid Blyton'', principalmente pelas analogias a que se refere o artigo.
Eu também li e reli várias vezes todos os livros dos cinco e identifacava-me com a ''Zé'', talvez por ser do tipo maria rapaz, mas nessa altura nem sequer sabia da minha orientação sexual porque não estava tão pouco para aí virada. Era apenas uma miúda que gostava de brincar, correr, saltar, subir às arvores, fazer desporto e fazer tudo o que os rapazes faziam, não porque tinha a ideia de ser igual a eles, mas porque achava que eles geralmente tinham uma liberdade que as raparigas não tinham. E em nome dessa liberdade ( achava injusto uns terem e outros não ), resolvi ser do ''contra'' e encetar pelo o caminho de tentar fazer ao máximo tudo o que os rapazes faziam ( claro que estou a falar de brincadeiras..não mais que isso naquela altura..).
Vejam só o que estes simples livrinhos podem fazer, sobre analogias....Eis aqui o artigo:
«««
Não sei se os miúdos ainda lêem os Cinco, ou ''os famosos cinco'', como lhes chamou a sua criadora, a britânica Enid Blyton. Eu devorei todos e cada um dos livros da série, e mais de uma vez.
Quando comecei a ler a sua obra, nada sabia dela e presumo que os meus pais, que tinham comprado os Cinco e os Sete para a minha irmã mais velha, também não. De modo que quando se aperceberam de que me estava a tornar aquilo a que à época se dava o nome de ''maria rapaz'', ou seja uma menina que queria fazer o que era suposto só os rapazes fazerem - jogar à bola, subir às arvores, andar à bulha, brincar com carrinhos - e odiava '' coisas de menina'', como saias e sapatos de verniz e totós, talvez não tenham logo responsabilizado a dona Enid e a sua mais notória personagem dos cinco, a ''Zé'' ( ou George, na versão inglesa - a Georgina, de 12 anos, que exige que a tratem por nome de rapaz, só usa roupa masculina e cabelo curto e tem como melhor amigo o seu cão Tim ), por tais, digamos, tendências. Que incluam, para completar o figurino, um amor desmesurado por cães e uma enorme vontade de aventura.
Eu seria pois o chamado caso exemplar da influência ( má ou boa, segundo a perspectiva) das leituras na formação da personalidade. Sucede, para estragar a teoria, que a minha irmã leu os mesmos livros e para ela a personagem de indentificação era a Ana, a mais nova dos Cinco, irmã de Júlio e David e prima da Zé. Timorata e ''feminina', a Ana gosta de saias, usa cabelo comprido, adora cozinhar e arrumar, é protegida por todos e debulha-se em lágrimas à menor contrariedade.
Não, o mistério da formação da personalidade e dos mecanismos de idendificação não se esgota decerto em receitas de leitura ou em sermões de qualquer espécie. Confrontando o estereótipo da menina-muito-menina com a maria-rapaz que as releituras actuais é vista quer como uma ''referência feminista'' quer como ''transgénero'' ( termo cunhado nos anos setenta do século XX para alguém que assume, na forma de vestir, na atitude e nos ''maneirismos'', uma identidade de género que não coincide com o seu género biológico), Blyton dava a imaginar. E as crianças imaginavam-se, de acordo com a sua intuição e desejo.
Recentemente, a personagem da Zé surgiu-me como tema de reflexão a propósito das elucubrações da direita cristã fundamentalista polaca ( repescando uma obessessão dos primos americanos) sobre uma das personagens da série infantil ''Teletubbies'', o Tinky Winky, que por ser lilás e ''usar uma malinha'', poderia estar a ''promover a homossexualidade''.
Há qualquer coisa de comovente na crença inabalável que todos os sistemas totalitários demonstram no poder das criações artísticas para conformar as mentes e até, parece, as sexualidades. Venho pois por este meio apelar às autoridades polacas ( e a todos os que como ela pensam ) para, após acabarem de discutir se poíbem ou não os ''Teletubbies'', dirigirem o sumamente esclarecido olhar para a mui subversiva Enid Blyton e para a sua tenebrosa criação, a Zé.
Ao fim de 50 anos de sossego, os Cinco já merecem uma nova aventura. E a boa da Enid, a quem já chamaram ''sexista'', ''racista'' e ''classista'', uma segunda vida, como papisa do lobby gay. »»»
( Fernanda Câncio -DN )